sexta-feira, novembro 25, 2005

somália hoje(clique na estrela)
brasil 1915 e hoje
Mais uma vez
Este recente crime da rua da Lapa traz de novo à tona essa questão do adultério da mulher e seu assassinato pelo marido. Na nossa hipócrita sociedade, parece estabelecido como direito, e mesmo dever do marido, o perpetrá-lo. Não se dá isto nesta ou naquela camada, mas de alto a baixo. Eu me lembro ainda hoje que, numa tarde de vadiação, há muitos anos, fui parar com o meu amigo, já falecido Ari Toom, no necrotério, no largo do Moura por aquela época. Uma rapariga - nós sabíamos isso pelos jornais - creio que espanhola, de nome Combra, havia sido assassinada pelo amante e, suspeitava-se, ao mesmo tempo marquereau dela, numa casa da rua de Sant'Ana. O crime teve a repercussão que os jornais lhe deram e os arredores do necrotério estavam povoados da população daquelas paragens e das adjacências do beco da Música e da rua da Misericórdia, que o Rio de Janeiro bem conhece. No interior da morgue 2, era a freqüência algo diferente sem deixar de ser um pouco semelhante à do exterior, e, talvez mesmo, em substância igual, mas muito bem vestida. Isto quanto às mulheres - bem entendido! Ari ficou mais tempo a contemplar os cadáveres. Eu saí logo. Lembro-me só do da mulher que estava vestida com um corpete e tinha só a saia de baixo. Não garanto que estivesse calçada com as chinelas, mas me parece hoje que estava. Pouco sangue e um furo bem circular no lado esquerdo, com bordas escuras, na altura do coração. Escrevi - cadáveres - pois o amante-cáften se havia suicidado após matar a Combra - o que me havia esquecido de dizer. Como ia contando, vim para o lado de fora e pus-me a ouvir os comentários daquelas pobres pierreuses de todas as cores, sobre o fato. Não havia uma que tivesse compaixão da sua colega da aristocrática classe. Todas elas tinham objurgatórias terríveis, condenando-a, julgando o seu assassínio coisa bem feita; e, se fossem homens, diziam, fariam o mesmo - tudo isto entremeado de palavras do calão obsceno próprias para injuriar uma mulher. Admirei-me e continuei a ouvir o que diziam com mais atenção. Sabem por que eram assim tão severas com a morta? Porque a supunham casada com o matador e ser adúltera. Documentos tão fortes como este não tenho sobre as outras camadas da sociedade; mas, quando fui jurado e, tive por colegas os médicos da nossa terra, funcionários e doutos de mais de três contos e seiscentos mil-réis de renda anual como manda a lei sejam os juizes de fato escolhidos, verifiquei que todos pensavam da mesma forma que aquelas maltrapilhas rôdeuses do largo do Moura. Mesmo eu - já contei isto alhures - servi num conselho de sentença que tinha de julgar um uxoricida e o absolvi. Fui fraco, pois a minha opinião, se não era falhe comer alguns anos de cadeia, era manifestar que havia, e no meu caso completamente incapaz de qualquer conquista, um homem que lhe desaprovava a barbaridade do ato. Cedi a rogos e, até, alguns partidos dos meus colegas de sala secreta. No caso atual, neste caso da rua da Lapa, vê-se bem como os defensores do criminoso querem explorar essa estúpida opinião de nosso povo que desculpa o uxoricídio quando há adultério, e parece até impor ao marido ultrajado dever de matar a sua ex-cara-metade. Que um outro qualquer advogado explorasse essa abusão bárbara da nossa gente, vá lá; mas que o Senhor Evaristo de Morais, cuja ilustração, cujo talento e cujo esforço na vida me causam tanta admiração, endosse, mesmo profissionalmente, semelhante doutrina é que me entristece. O liberal, o socialista Evaristo, quase anarquista, está me parecendo uma dessas engraçadas feministas Brasil, gênero professora Daltro, que querem a emancipação da mulher unicamente para exercer sinecuras do governo e rendosos cargos políticos; mas que, quando se trata desse absurdo costume nosso de perdoar os maridos assassinos de suas mulheres, por isso ou aquilo, nada dizem e ficam na moita. A meu ver, não há degradação maior para a mulher do que semelhante opinião quase geral; nada a degrada mais do que isso, penso eu. Entretanto... Às vezes mesmo, o adultério é o que se vê e o que não se vê são outros interesses e despeitos que só uma análise mais sutil podia revelar nesses lagos. No crime da rua da Lapa, o criminoso, o marido, o interessado no caso, portanto, não alegou quando depôs sozinho que a sua mulher fosse adúltera; entretanto, a defesa, lemos nos jornais, está procurando "justificar" que ela o era. O crime em si não me interessa, senão no que toca à minha piedade por ambos; mas, se houvesse de escrever um romance, e não é o caso, explicaria, ainda me louvando nos jornais, a coisa de modo talvez satisfatório. Não quero, porém, escrever romances e estou mesmo disposto a não escrevê-los mais, se algum dia escrevi um, de acordo com os cânones da nossa crítica; por isso guardo as minhas observações e ilusões para o meu gasto e para o julgamento da nossa atroz sociedade burguesa, cujo espírito, cujos imperativos da nossa ação na vida animaram, o que parece absurdo, mas de que estou absolutamente certo - O protagonista do lamentável drama da rua da Lapa. Afastei-me do meu objetivo, que era mostrar a grosseria, a barbaridade desse nosso costume de achar justo que o marido mate a mulher adúltera ou que a crê tal. Toda a campanha para mostrar a iniqüidade de semelhante julgamento não será perdida; e não deixo passar vaza que não diga algumas toscas palavras, condenando-o. Se a coisa continuar assim, em breve, de lei costumeira, passará a lei escrita e retrogradamos às usanças selvagens que queimavam e enterravam vivas as adúlteras. Convém entretanto lembrar que, nas velhas legislações, havia casos de adultério legal. Creio que Sólon e Licurgo os admitia; creio mesmo ambos. Não tenho aqui o meu Plutarco. Seja, porém, como for, não digo que todos os adultérios são perdoáveis. Pior do que o adultério é o assassinato; e nós queremos criar uma espécie dele baseado na lei.
Lima Barreto_Bagatelas, s.d.
A lei
Este caso da parteira merece sérias reflexões que tendem a interrogar sobre a serventia da lei. Uma senhora, separada do marido, muito naturalmente quer conservar em sua companhia a filha; e muito naturalmente também não quer viver isolada e cede, por isto ou aquilo, a uma inclinação amorosa. O caso se complica com uma gravidez e para que a lei, baseada em uma moral que já se findou, não lhe tire a filha, procura uma conhecida, sua amiga, a fim de provocar um aborto de forma a não se comprometer. Vê-se bem que na intromissão da “curiosa" não houve nenhuma espécie de interesse subalterno, não foi questão de dinheiro. O que houve foi simplesmente camaradagem, amizade, vontade de servir a uma amiga, de livrá-la de uma terrível situação. Aos olhos de todos, é um ato digno, porque, mais do que o amor, a amizade se impõe. Acontece que a sua intervenção foi desastrosa e lá vem a lei, os regulamentos, a polícia, os inquéritos, os peritos, a faculdade e berram: você é uma criminosa! você quis impedir que nascesse mais um homem para aborrecer-se com a vida! Berram e levam a pobre mulher para os autos, para a justiça, para a chicana, para os depoimentos, para essa via-sacra da justiça, que talvez o próprio Cristo não percorresse com resignação. A parteira, mulher humilde, temerosa das leis, que não conhecia, amedrontada com a prisão, onde nunca esperava parar, mata-se. Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que, para proteger uma vida provável, sacrifica duas? Sim, duas porque a outra procurou a morte para que a lei não lhe tirasse a filha. De que vale a lei?
Lima Barreto _Vida urbana, 7-1-1915
Deus é Pai, pois se Mãe fosse, talvez as coisas fossem diferentes
Guga Alayon_Zica urbana, 25-11-2005

este post participa da Blogagem Coletiva organizada pela Síndrome de Estocolmo comemorando o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra a Mulher